12 setembro 2006
Stefânia Former - Depoimento
Nâmaskar = Namastê
Continuando a tradição de postar a opinião e relatos de outras pessoas sobre a Índia, hoje temos a experiência indiana vivida na pele pela querida Stefânia Former.
AIDNI
A tarefa mais difícil dos últimos seis meses e meio é simplificar a experiência que vivi na Índia. Não consigo ainda entender o que aconteceu, o porquê e como. Sobrevivi a cada chapati, paneer, dosa, lassi e pani puri e me apaixonei pelo país.
Quando em Setembro de 2005 decidi que minha vida estava chata demais para uma estudante e estava cansada de sentar em bancos universitários de corpo presente, mas sem motivação de estudar resolvi fazer algo a respeito disso e utilizar meu conhecimento teórico na prática, porém nem eu mesma imaginei que acabaria no outro lado do planeta.
Após ser selecionada pela AIESEC (http://www.aiesec.org/) encontrei um estágio na minha área de interesse acadêmico na Índia. Deixar minha vida confortável e segura e trancar a faculdade por um semestre para ir morar com uma família indiana desconhecida, ter regras familiares novamente e trabalhar com um assunto nada delicado em uma nação onde a palavra “sexo” ainda é um tabu, não foi surpresa para muitos, especialmente para minha família quando comuniquei tal desafio. Acredito que de todas as pessoas que me apoiaram não há como agradecer o apoio e o respeito completo da minha família pela minha “loucura” como muitos dizem.
Ainda lembro muitos me dizendo que “seis meses não é muito tempo para mudar conceitos e valores enraizados”, hoje aqui sentada tentando entender o que vivi, tenho cada vez mais certeza que foram as 28 semanas mais enriquecedoras, desafiadoras e, muitas vezes, insuportáveis da minha vida até agora.
Tive a felicidade de vivenciar a cultura e aprender a amar uma nação que, muitas vezes, não me deixou dormir. Aprendi a olhar além dos meus horizontes visíveis e amar um país que, muitos, odeiam devido à sujeira excessiva, a falta de higiene, a comida apimentada, como as mulheres são tratadas e como os homens olham as estrangeiras e o trânsito caótico. Odiar a Índia é muito mais fácil do que amar. Há muito a ser odiado, mas há tanto para se apaixonar se deixarmos nossos conceitos de “certo e errado”, “bom e ruim”, “ocidente e oriente”, “capitalismo e socialismo” de lado. Tudo na Índia é ao contrário. Amor pode ser ódio e na nação de Gandhi, o capitalismo surge à flor da pele nos jovens, ao mesmo tempo em que peregrinos ainda caminham em busca da verdade eterna. A contradição mora na Índia e, assim, aprendi a desenvolver a maior virtude humana: paciência. É na Índia que você pode escolher entre morrer de ataque cardíaco ou aprender que nem tudo está sob nosso controle.
Trabalhei seis meses para a ONG “Child Foundation of India” sob a responsabilidade do Dr. Kutikuppala Surya Rao em Visakhapatnam – Andhra Pradesh com um assunto nada delicado como HIV/AIDS numa nação que em 2006 tornou-se número 1 em maior quantidade de pessoas vivendo com HIV/AIDS no mundo, tendo agora 5.7 milhões pessoas infectadas pelo vírus. Índia assiste a uma geração morrer e, infelizmente, ainda quer acreditar nos valores tradicionais enraizados há milhares de anos como sexo somente após o casamento.
Quando a exaustão psicológica, a frustração lingüística e o trabalho que nunca terá um final me apavoraram, desistir nunca se tornou uma opção e muito menos deixei de sonhar. Meu trabalho foi consistente e desafiador. Vi o ser humano na sua real essência e aprendi que precisamos muito pouco para viver. Vivi cada segundo como se fosse o último e trabalhei cada dia como se fosse o final do mundo – afinal, estamos a caminho, se já não atingimos, de um caos social, onde o ser humano só tem olhos para si mesmo. No entanto, houve dias que nunca desejei estar em outro lugar a não ser na Índia.
O que faz essa nação ser o que é, basicamente é sua tradição, especialmente familiar, no entanto, em pleno século XXI conceitos que, até então, estavam sendo impostos como verdades absolutas estão começando a chocar-se com a contaminação absurda de HIV pelos jovens, por simples e mero fato: vergonha governamental de distribuir camisinhas e das pessoas de falar de sexo no país do Kama Sutra.
A divisão de gênero é clara e absoluta e, o casamento arranjado ainda persiste, o que mais me surpreende é que após conversar e vivenciar tal cultura, hoje não julgo mais tal ato. Muitos casamentos dão certo e, é basicamente complicado ter contato com o sexo oposto quando ambos os gêneros crescem, estudam em lugares diferentes. Aqui estou eu, tentando compreender algo que muitos, ocidentais abominam na Índia: confiar nos pais para um amor eterno. Talvez isso só demonstre dois fatos: A Índia me transformou em alguém insuportavelmente tolerante ou apenas surtei por completo.
Aprendi que respeitar os costumes de uma nação é respeitar, também, a si mesmo. Chorei por razões absurdas e suei muito embaixo ou não do sol de 45 graus e sorri, sorri mais do que qualquer outro momento na minha vida. A Índia ensinou-me a valorizar o ser humano.
A Índia pode ser o que você quiser que ela seja. Isso depende muito de quem e como está vivendo nela.
Aceitei o desafio e vivi cada segundo dele. Não sou uma pessoa melhor ou pior, mas sim diferente do que era antes de embarcar para a Índia e não vou negar que lágrimas correram dos meus olhos quando o avião levantou vôo de Mumbai para um outro mundo e prometi a mim mesma que volto o mais breve possível.
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Leia também os relatos das seguintes pessoas no blog Indi(a)gestão:
08/02/2006 – Relato da Roberta
16/02/2006 - Relato da Roberta – Continuação
24/02/2006 – Relato da Roberta – Continuação
10/03/2006 – Relato da Roberta – Continuação
31/03/2006 – Relato da Roberta – FIM
06/04/2006 – Renato na Índia
17/04/2006 - Desabafo
19/04/2006 – Silvia e Ana, uma visão jornalística da Índia
29/04/2006 – Marcelo Panhoca – O Viajante
04/05/2006 – Depoimento da Karen
15/06/2006 – O Verão Indiano e a Paulinha Portuguesa
21/08/2006 – Agnes – Relato – Parte I
22/08/2006 – Agnes – Relato – Parte II
05/09/2006 – 10 Coisas que odeio sobre a Índia
OM Shanti
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