28 maio 2008

Marcia na India






A INDIA DE AR CONDICIONADO

Viajamos para a Índia, para comemorar meu 50º aniversário, após anos de programações e leituras, ouvindo e vendo tudo sobre aquele país, inclusive o blog da Profª Sandra, o excelente Indi(a)gestão, descoberto pela Adriana quando já havíamos fechado o roteiro, o que sem dúvida nos deu uma medida real para o nosso sonho. Está certo, visitamos a Índia em confortáveis meios de transporte com ar condicionado, por isso não poderemos falar da sensação de viajar em ônibus apinhados, debaixo do sol gritante, da volta para casa em tuc-tuc ou a pé, mesmo, caminhando de chinelinhos em estradas empoeiradas, do cheiro da comida ardente vendida nas ruas e da água que pode fazer mal.

Tudo isso é a Índia, evidentemente. Mas também os templos cuidadosamente decorados por gerações de artistas; a carruagem de Shiva, esculpida num só bloco de pedra em Ellora (coisa de fazer inveja a Michelangelo!); as miniaturas do Rajastão, feitas com tintas minerais moídas, ouro e prata, preparadas pelos estudantes das escolas de arte e utilizadas pelos mestres, nas quais podem ser vistos os pêlos de animais, quando usamos lupas; as pinturas em perspectiva de Udaipur, criadas muito antes de a mesma ser “descoberta” pela Renascença italiana.

A Índia é, ainda, o colorido das indianas, os adornos, sejam de ouro ou de plástico, os cabelos lisos, cuidadosamente trançados ou amarrados num coque, seu cheiro inconfundível de beleza. Os saris feitos de seda ou de algodão, impecáveis ou surrados, as transformam nas mulheres mais elegantes do planeta, em minha opinião, algo que nenhum estilista francês conseguiu superar: seis metros de tecido, em geral feito tradicionalmente, sem nenhuma costura. Mas isso é um caso a parte...

Os homens indianos – alguns famintos pelo contato com o sexo oposto fora de seus casamentos arranjados muito cedo, outros sinceramente interessados na vida em nosso país – pararam na década de 50, pelo menos no modo de vestir e de se pentear. Os mais ousados estariam já nos anos 80, como os artistas que aparecem nas novelas e musicais da tevê. Os artistas de Bollywood... bem... esses fazem de tudo: cantam, dançam, interpretam, tocam mas, provavelmente, não pregam botões, como dizia uma propaganda antiga da máquina de costura que fazia tudo.

Algumas coisas, porém, nos lembravam que não estávamos num lugar qualquer, mas num país que desde a independência iniciada por Gandhi está em transição de uma sabedoria milenar e de um sistema rígido de castas para o corrompido mundo do consumo, do qual todos devem participar como consumidores ou consumidos. A república indiana que nasceu socialista, cansou de sustentar os antigos governantes dos diversos reinos que a formavam e eles tiveram, por assim dizer, que “pôr a mão na massa” para custear suas enormes despesas. Seus palácios, onde muitos ainda vivem, cederam grande parte dos antigos aposentos para visitação pública, ou viraram luxuosos hotéis e restaurantes, enquanto os incontáveis súditos ainda veneram os lugares por onde os descendentes deles passam e pedem sua “bênção” nas festas e apresentações públicas. E parece bem charmoso ter um governante que não mais governa (e, portanto, não pode ser culpado por nada), somente para fazer as vezes de um deus vivo. Um entre os mais de 30.000 que existem por todo o país, dos quais só conhecemos os mais famosos: Brahma, o criador, Vishnu, o mantenedor, e Shiva, o transformador, com as respectivas consortes Saraswati, Lashmi e Parvati (ou Durga, dependendo de seu bom ou mau humor – nossos guias riam bastante quando dizíamos que dentro de toda “Parvati” há uma “Durga”).

A veneração dos indianos pelos seus deuses de pedra, faces, na verdade, de um único Deus, como explicou-nos um de nossos guias, justifica todos os rituais que cercam a vida desse povo, do nascimento à morte. A adoração nos templos, os pujas (oferendas), as celebrações, o casamento e o cerimonial da morte, com a cremação dos corpos para que todos os elementos voltem à origem, inclusive a alma que não se deseja retorne para este mundo de desejos e sofrimentos.

Para entender a alma indiana, no entanto, é preciso tentar compreender também a peregrinação dos homens santos; os animais andando livres pelas ruas; a importância dos rios sagrados; as salinas que surgem tão longe do mar, nas terras áridas do semi-deserto que começa em Jodhpur; o olhar distante das mulheres paupérrimas - e provavelmente com dois ou três filhos - que carregam pedras nas cabeças, por 150 rúpias (cerca de 3 dólares) ao dia; as crianças que nos pedem cremes para o rosto ou batons, como foram acostumadas pelos turistas estrangeiros; a insistência irritante dos vendedores que não aceitam “não” como resposta, mas que não se irritam quando lhes damos as costas e vamos simplesmente embora, sem nada dizer.

De todas as coisas que vimos, duas nos impressionaram muito: os pequenos estudantes que pediam canetas aos turistas, perto da escola, em perfeito inglês, pulando de alegria, beijando o precioso troféu, quando o conseguiam e a tranqüilidade daquele povo nem sempre pacífico, politicamente falando, diante do trânsito caótico das cidades, onde semáforos foram feitos para serem admirados, mas nunca obedecidos, pois o que vale mesmo é o som das buzinas (seja nas ruas ou nas estradas) informando que o carro está sendo ultrapassado (pela direita, é claro, parte da grande herança da dominação inglesa que levou muitos de seus tesouros). Mesmo sem vacas parando no caminho, sem motos e bicicletas carregando no mínimo 3 pessoas; sem pedestres atravessando o tempo todo entre camelos e os “besourinhos” tuc-tuc que vão costurando as ruas, levando os motoristas a fazerem manobras perigosas e assustadoras para nós, muita gente no Brasil, por muito menos, já teria matado ou morrido de impaciência.

Mas o que se pode dizer desse povo que tem a comida apimentada e o sorriso doce, tornando irrecusável seu tchai (chá com especiarias), seus incensos, seus tecidos, seus óleos perfumados, seu artesanato, suas tatuagens de henna e qualquer coisa que nos ofereçam?

Diríamos que se preparam para enfrentar o “mundo lá fora”, como devíamos ter feito há muito tempo por aqui. Nas grandes e pequenas cidades, há escolas públicas por toda parte, com transporte para as crianças. As meninas já não ficam mais fora das classes, embora as do interior não passem dos primeiros estágios escolares, antes de se casarem. As universidades também brotam, especialmente as da área médica e de tecnologia, exportando pessoal para os ditos países de primeiro mundo. Um indiano contou-nos que são os estudantes pobres que freqüentam as grandes escolas de medicina por lá, pois o curso é muito difícil e os ricos não estão dispostos a se sacrificar, preferindo perpetuar-se nos prazeres, exceto a carne. Há também uma campanha em out-doors para que esses profissionais permaneçam no país depois de formados, a fim de atender à população carente da qual vieram.

Podemos não ter compreendido por completo seus contrastes ou suas ambigüidades; a pobreza imensa e a fartura cultural e religiosa; a cortesia sincera e a simplicidade em contraposição à crueldade das disputas pela sobrevivência no mundo do consumo; a fé inabalável nas coisas do “outro mundo”, mas também não é assim no Brasil? Ao pôr os pés em Mumbai e depois, ao sairmos de Delhi, em todos os momentos sentimo-nos em casa, talvez apenas sem a preocupação com horários, violência e correria. Por aqui, quem sabe, só nos falte um pouco mais de sorrisos, sinceridade, de curiosidade pelo outro, de vontade de desvendar, misturando o jeitinho indiano de ser ao inconfundível jeitinho brasileiro.

Não podemos deixar de relatar as coisas curiosas e/ou engraçadas que nos aconteceram, como o quase “assédio sexual” de alguns vendedores numa loja em Mumbai; o susto que levamos ao descobrir que no toalete feminino havia um “he” e um “she”, significando o modo ocidental (vaso sanitário) ou o indiano, utilizado pelas mulheres com sari (um buraco no chão, que você só acerta com os pés nos lugares exatos); a surpresa que demonstravam ao descobrirem (principalmente a Adriana) que não éramos indianas, por causa de nossa pele amorenada e a alegria com que nos recebiam, então, como brasileiras; a primeira refeição indiana a gente nunca esquece (principalmente eu que fui levada em desespero a um banheiro de estrada por causa dela); o tenebroso percurso de trem de Jodhpur a Jaipur, com direito a carregar nossas malas por incontáveis escadas, enquanto as pessoas escovavam os dentes e faziam “outras coisas” sobre os trilhos, além da uma hora e meia de atraso; o bolo de aniversário que ganhei quando reclamei; o desfile do Gangaur e o jantar glorioso no Rambagh Palace, da rede Taj, em Jaipur, com direito a lagosta, vinho branco e sobremesa de chef francês; nossa ida ao costureiro, em Jodhpur, para fazer trajes indianos que foram entregues no mesmo dia; a visita ao Taj Mahal, em Agra, ao museu de Gandhi (Mumbai) e ao memorial do Mahatma (Delhi); eu, no começo, ainda tentando ser gentil com os vendedores que me cercavam como corvos; a Adriana, normalmente comedida, expulsando os vendedores, como Jesus no templo, no final da viagem; as doces uvas sem semente compradas na rua comidas com gosto e que não fizeram mal; a saborosa manga Alfonso, presente do dono de uma tecelagem familiar em Aurangabad; a ligação para a Sandra em nosso último dia na Índia; Ah! Saudade do Brasil... Uma vontade de ficar...

Sandra, você tinha razão quando nos disse que estranharíamos bastante ao chegar em Paris. Realmente. Não fomos mais tratadas como seres dignos de admiração. A cidade-luz nos recebeu com frio e chuva e enquanto todos corriam para algum lugar, dentro do metrô ou nas ruas, percebemos que todo mundo se vestia de preto ou cinza ou bege e que tudo parecia muito triste. Sentimos falta da profusão de cores indianas, mas nem um pouco do assédio dos vendedores, que também existem em Paris, mas desistem a um não incisivo. Lá também há moradores de rua e pessoas que pedem dinheiro nos vagões do metrô, como aqui no Brasil. Os franceses melhoraram muito em termos de receptividade (a campanha trate bem o turista deve ter dado certo), mas jamais chegarão aos pés dos indianos, em termos de cortesia. Creio que pagamos todo o carma de não termos dados gorjeta a muitos carregadores indianos, pois em Paris ninguém nos ajudou a carregá-las.

Já nos disseram que a Índia ou se ama ou se odeia. Posso dizer por mim e pela Dri que não a odiamos e até trouxemos um pouquinho dela em seus temperos e vestimentas. Deixamos lá muitas risadas e pouca irritação, talvez porque a gente saiba como é viver no terceiro mundo, tomar ônibus cheio, fazer bicos para melhorar o orçamento. É claro que voltaremos, já está combinado. Mais alguns anos e fecharemos um novo roteiro, quem sabe para o sul. Precisamos também ver o Ganges, visitar Sai Baba, conhecer a cultura portuguesa de Goa. Fazer uma nova viagem, dessa vez sem ar condicionado.

Márcia e Adriana

P.S. – ainda não digitei nosso diário de viagem, mas também com quase 4.000 fotos tiradas entre 30/03 a 17/04/2008, ainda não tivemos tempo de compilar tudo.