O cinema como religião
Os mistérios da relação passional dos indianos com seu cinema, que atrai diariamente cerca de 15 milhões de pessoas, e fez com que nenhum outro país tenha exacerbado tanto a extrema porosidade entre a vida real e o cinema
Texto de: Elisabeth Lequeret
Um cinema qualquer, num bairro popular de Madras, no sudeste da Índia. Imenso (mais de mil lugares), como a maioria das 20 mil salas de projeção do país. E repleto. Naquela tarde, ninguém quer perder Pennin Manadai Thottu (literalmente: "Toque o coração de uma mulher"), sucesso cinematográfico cuja trilha sonora invadiu, há várias semanas, as ruas da capital do Estado de Tamil Nadu. Um domingo como tantos outros num cinema na Índia…
Para além do aspecto pitoresco, a situação é representativa da relação que os indianos cultivam com o cinema nacional, na qual o mais intenso fervor convive com o que poderia ser interpretado como impertinência por um observador ocidental, habituado ao silêncio religioso e à penumbra das salas de projeção. Na Índia o povo reage e praticamente interage com o filme.
Ruídos, murmúrios, movimento incessante – quem quer que tenha assistido a uma projeção em Bombaim, Madras ou Bangalore (os três pólos cinematográficos do subcontinente) deve lembrar-se da intensa vida das salas de cinema: comunhão geral e murmúrios de aprovação quando o "mocinho" dá uma lição no rival com um chute certeiro; aplausos quando um pai humilhado dá uma magistral bofetada – finalmente – em sua filha indigna; emoção e fervor nas cenas de canto e dança, revividas pela platéia em transe que, sem hesitar, interpela, parabeniza ou repreende os atores.
Feira de imagens
Se o cinema se tornou a diversão preferida dos indianos é igualmente porque incorpora o fantástico da cosmogonia hindu, restituindo-o depois de operar uma reformulação
A razão de o cinema fazer parte da cultura indiana é, sem dúvida, seu caráter impuro. Desde o início, os indianos adotaram – e adoraram – esta arte capaz de unir, em três horas, representação e narração, dança e música, romance íntimo e calor épico.
O cinematógrafo chegou em Bombaim, a cidade mais ocidentalizada do país. Maurice Sestier, representante dos irmãos Lumière, organizava, no dia 7 de julho de 1896, a primeira sessão de projeção no luxuoso hotel Watson e, mais tarde, no teatro Novelty, no centro da cidade. Poltronas de luxo e assentos baratos, uma cortina para resguardar as espectadoras da curiosidade masculina e uma grande orquestra – que, já naquela época, acompanhava o espetáculo – foram os ingredientes de um sucesso imediato. "A indústria cinematográfica está tão intimamente associada à cultura do nosso país que, cem anos depois da invenção dos irmãos Lumière, os indianos não concebem o cinema como algo que tenha vindo do exterior", confirma o produtor Suresh Jindeel 2. Indianos não admitem que nada tenha vindo do exterior, inclusive a pimenta verde tão comumente usada.
Diversão preferida
A originalidade, principal virtude de um roteiro ocidental, na verdade faria afugentar os indianos
Se o cinema se tornou a diversão preferida dos indianos é igualmente porque incorpora o fantástico da cosmogonia hindu, restituindo-o depois de operar uma reformulação. Cada filme é vivido como uma longa viagem (que dura, na maioria das vezes, mais de três horas e, em todos os casos, sempre mais de duas), na qual se embarca com verdadeiro deleite rumo a obras de ficção que surrupiam, sem escrúpulos, o patrimônio mitológico e lendário. Aliás, a indústria cinematográfica de Mumbai deve aos filmes mitológicos seus primeiros grandes sucessos populares, em particular Raja Harishchandra ("O rei Harishchandra", de Dadasaheb H. Phalke, 1912), primeira ficção nacional.
Este gênero praticamente desapareceu, mas um grande número de roteiros continua a inspirar-se livremente nos grandes épicos tradicionais Ramayana e Mahabharata, entre os quais Rudraksha, versão "ficção científica" de Mahabharata lançada em 2004 pelo produtor Nitin Manmohan. Da mesma forma, o casal recorrente (a moça jovem que cultiva uma devoção inabalável a um amante romântico, passivo e pueril) inspira-se tanto em Majnoun e Leila (o casal mais célebre da literatura árabe) como na cultura indo-persa e na poesia viraha (em sânscrito e em tamil).
Leia mais sobre o cinema indiano em uma próxima postagem.
FOTO: ator indiano Hrithik Roshan
Incredible India! (slogan do governo indiano)
Om Shanti